domingo, 27 de julho de 2008

HENRIQUINHO




Henriquinho
Morreu meu amigo Henrique, o Henriquinho, um luxemburguês grandalhão, com quase dois metros de altura, gordo, ruivo e feio. Um homem extremamente bom, inteligente, culto, irônico. Ria e fazia piadas com suas doenças, com suas tragédias. Caçoava do médico, este seu amigo que agora escreve algumas recordações de uma convivência curta, algumas lembranças de fatos e conversas que mantivemos no consultório ou no hospital.
A primeira vez que vi Henriquinho, logo que cheguei a Monlevade (João Monlevade, cidade do interior de Minas Gerais N.E.), levei um susto: ele estava assentado numa cadeira de vime, no hall de entrada do Hotel Cassino e gemia de dor, a minha espera. Estava sofrendo uma cólica renal e garantia, na sua voz rouca e enrolada de gringo, que aquela dor que ele estava sofrendo devia ser muito pior que a dor que mulher sente na hora do parto.
- Mas eu prefiro essa cólica de rins que sofrer uma dor de parto, senhor doutor, disse ele, com um sorriso, tentando disfarçar a dor. Aliás, monsieur Henri foi um mestre em disfarçar dores e sofrimentos, com coragem e espírito estóico. Nesses dez ou 12 anos que convivi com ele, sempre percebi tristeza e amargura por trás dos seus olhos miúdos e espetados naquela cara vermelha e grande. Senti pena dele em diversas ocasiões. Senti pena no dia em que sua esposa, Dª. Rúmia, faleceu em acidente brutal, atropelada. Senti pena ao ver Henriquinho chorar. Grossas lágrimas escorriam em seu rosto, mas ele permanecia em silêncio, quieto, sem fazer barulho, sem gritar, sem fungar. Como dói ver uma pessoa chorar em silêncio. E o Henriquinho, no hospital, onde velava o corpo de sua esposa, chorava em silêncio.
Tempos depois, senti pena dele ao vê-lo com um pé quebrado, engessado. Aquele homem enorme, gordo, com o pé engessado. Recuperação lenta, difícil e dolorosa. Após a retirada do gesso, cuidados de fisioterapia, massagens, calor. Nessas suas idas e vindas ao hospital, costuma cruzar com ele no corredor com um bon jour, monsieur, respondido por um bon jour, docteur e lá seguia o bom homem, capengando, equilibrando o peso do corpo às custas dos braços bem abertos.
Nossa amizade tornou-se maior quando ele começou a freqüentar o meu consultório com mais assiduidade, a partir do dia em que chegou, usando seu tradicional slack de brim amarelo, assentou-se na cadeira e disse: Senhor doutor, quero tratar meu diabetes com o senhor.
Para mim, aquilo foi motivo de susto e surpresa.
- Uai, mas eu nem sabia que você era diabético.
Realmente era para assustar a qualquer um, pois o Henriquinho não era do tipo de doente que faz dietas e segue regimes próprios para quem sofre de diabetes. Gostava de sua cerveja, presunto, leite com mel, queijo gordo. Não consegui saber se comia doces escondidos, mas acredito que sim. Nessa fase inicial do tratamento, procurei avaliar como andava sua doença e perguntei se ele sentia muita sede, se bebia muita água. Ele riu.
- Água, senhor doutor? Mas eu não bebo água nunca. Eu bebo é cerveja. E deu uma gargalhada, naquele seu estilo, devagar, pois era calmo para tudo. Ria alto e devagar. Depois ficou sério e disse: Ah, doutor. Agora me lembro: de vez em quando eu tomo água. Quando coloco gelo no uísque. E riu de novo, alto e devagar.
Realmente, o Henriquinho gostava de tomar suas cervejas, mas era um homem sereno, bem-comportado. A bebida não lhe modificava a personalidade, não o embriagava. Apenas lhe dava um sono muito bom, como ele dizia.
Gostava das pessoas que não teimavam com ele, das que não tentavam forçá-lo a mudar a maneira que insistiam em continuar inchadas apesar dos diversos remédios que ele jurava estar tomando. Na última vez que o vi, notei que estava um pouco triste, na hora de sair do consultório, na despedida. Ao contrário do seu alegre e habitual au revoir, monsieur le docteur, ele parou na porta da sala, olhou para mim e disse: adieu, monsieur le docteur.
Foi essa a última vez que o vi e guardo dele essa última recordação: um homem bondoso e triste, que dissimulava a bondade atrás daquele seu ar carrancudo e escondia sua tristeza atrás da constante ironia.
Henriquinho morreu em casa, ao lado de sua querida filha, a quem ele tanto amava, a Lília. Pela manhã, tomou leite com mel. Estou com sede, por isso tomo leite, disse ele para a filha.
- Mas se o senhor está com sede, deve beber água e não leite com mel.
- Não, Lília, água com mel não é gostoso.
Morreu Henrique, meu amigo, muito mais amigo que cliente, um homem que só deixou amigos, amigos um tanto frustrados, como eu, que nunca tiveram oportunidade de convivência maior com ele. Poucas pessoas puderam conviver mais intimamente com ele, visitá-lo em casa, bater papo, conhecê-lo melhor. Contudo, a lembrança de sua pessoa será sempre estimulante e alegre. Um homem bom e sensível que ao perceber que estava morrendo pediu a sua querida Lília que colocasse uma cruz com um pano branco na porta da casa. - Mas, para quê, Henriquinho?
- Ah, Lília, você não sabe o que significa um pano branco pendurado numa cruz? Significa paz.


Autor: Dr. Stanley Baptista de Oliveira


Do Site: www.noticiashospitalares.com.br/cronica.htm